Euclides da Cunha: Obra completa interminável

Felipe Pereira Rissato

Quando Afrânio Coutinho e a editora José Aguilar lançaram, em 1966, em comemoração ao centenário de nascimento do escritor Euclides da Cunha, a sua Obra Completa, apesar de terem consciência de sua incompletude, não imaginavam que nem de longe a referida edição merecia este título.

A começar pela reconhecida impressão parcial do caderno Ondas, onde Euclides escrevera mais de 80 poesias, tendo menos da metade publicada, inclusive somando-se à edição poesias que não constam do caderno. Em extensa pesquisa com mais de uma década e que está às vésperas de ir ao prelo, os pesquisadores Francisco Foot Hardman e Leopoldo Bernucci encontraram mais de uma centena de poemas, muitos deles inéditos, e estão preparando, agora sim, uma edição atualizada e corrigida da obra poética de Euclides da Cunha.

Embora não faça parte da “obra do autor”, uma vez que ao contrário dos livros e artigos não foi escrita com a intenção de ser publicada, a correspondência euclidiana também foi inserida, felizmente, na Obra Completa. Entretanto, mais de 30 anos após o seu lançamento, o incansável euclidiano Dr. Oswaldo Galotti em parceria com a Profª Walnice Nogueira Galvão, editaram um livro reunindo quase 400 cartas, sendo mais de 100 inéditas até então, sem falar que outras cartas inéditas já foram encontradas mesmo após o lançamento deste livro.

Finalmente, no quesito artigos euclidianos, a Obra Completa também foi falha. Em menos de um ano após o seu lançamento, o pesquisador Olímpio de Sousa Andrade editou o livro Canudos e Inéditos trazendo três artigos que não constam da Obra Completa: “O 4º Centenário do Brasil”, “Viajando…” que é uma variante anterior à redação final de “Entre as Ruínas”, que faz parte dos Contrastes e Confrontos, e ainda um artigo proveniente da famosa cobertura “Canudos – Diário de Uma Expedição”, com data de 6 de setembro de 1897, publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo no dia 22 do mesmo mês.
Infelizmente a Obra Completa foi reeditada em 1995 pela Nova Aguilar sem que nenhuma destas descobertas tivesse sido incorporada ao texto. O único acréscimo diz respeito à bibliografia, no início do primeiro volume, indicando cronologicamente onde cada artigo euclidiano foi publicado originalmente.

Eis que em 2005 o pesquisador Joel Bicalho Tostes encontra três novos artigos, nunca sequer mencionados, publicados no jornal Democracia, do Rio de Janeiro, em maio de 1890.

Dois dos artigos, intitulados “Resposta à Confederação Abolicionista”, são assinados em parceria, algo inédito na obra euclidiana, sendo apenas um, intitulado “Amanhã”, de autoria exclusiva de Euclides da Cunha.

Outra falha encontrada na Obra Completa no que concerne aos artigos, corresponde à série de três artigos intitulada “Estudos de Higiene”, publicados no jornal O Estado de S. Paulo em 4, 9 e 14 de maio de 1897, onde Euclides faz uma longa resenha do livro de mesmo título, escrito pelo Dr. Torquato Tapajós.

Os três artigos foram referenciados por Olímpio de Sousa Andrade em 1960 no livro História e Interpretação de Os Sertões, que listou as datas em que os mesmos foram publicados e fez breve comentário a respeito da resenha de Euclides, que era francamente desfavorável ao livro, devido ao alto número de citações nele contidas. Olímpio transcreve três frases do primeiro artigo e também três frases do segundo.
Mesmo com essa divulgação, na Obra Completa (editada 6 anos depois), só foi publicado o primeiro artigo da série, com data de 4 de maio de 1897 e ainda com o título alterado para “Estudos Sobre Higiene”. Quando a segunda edição foi lançada, em 1995, o mesmo engano se reproduziu, constando apenas na já mencionada bibliografia a indicação das três datas em que foram publicadas cada parte do artigo, com o título correto: “Estudos de Higiene”.

No início do primeiro artigo, Euclides refere-se aos três “aspectos predominantes do livro” estudado, assim definindo-os:

…o combate e subseqüente destruição de um erro resumido na afirmativa imponderada de um lençol d’água subterrâneo, no sentido higiênico da expressão, como fator de primeira ordem na constituição médica daquela cidade; a aproximação a suas condições meteorológicas da teoria notável de Jourdanet acerca da função fisiológica das pressões e, finalmente, o estudo realmente interessante da gênesis mórbida determinada pelas péssimas condições dos terrenos marginais em certas zonas da baía aliadas às feições topográficas que impedindo a ventilação franca dos alísios entrega-a ao império quase exclusivo das brisas alternantes.

Pois bem, neste primeiro artigo Euclides versa apenas a respeito do lençol d’água subterrâneo, tendo o artigo no jornal duas breves separações, uma com três estrelas e outra com um travessão, o que, de certa forma, divide-o em três partes.
O artigo, tendo sido publicado desta forma na Obra Completa, apenas substituindo as três estrelas separadoras por uma, e o travessão também por uma estrela, pode ter confundido os pesquisadores, julgando terem sido os três artigos publicados, pois não se justificava a não publicação dos dois artigos restantes a não ser por um engano. O que contribui para esta conclusão está na última frase do primeiro artigo: “Não insistamos, porém, neste assunto.” Temos todos a equivocada impressão de que Euclides nada mais escreveria a respeito. Mas ele retorna no dia 9 com o segundo artigo, tratando do tema meteorológico e da pressão atmosférica.

Euclides então finaliza a série no dia 14 com um terceiro artigo sobre as brisas alternantes e insalubres que sopram no Rio de Janeiro. Sendo a frase final do terceiro artigo: “Atinge-se neste ponto a última página do livro.”

Apesar da resenha desfavorável no primeiro artigo, Euclides faz as pazes com o Dr. Torquato Tapajós nos artigos subsequentes, escrevendo no terceiro:

apesar de avultarem os defeitos que ousamos apontar no início desta pálida apreciação – num acumular excessivo de transcrições em grande parte dispensáveis – é forçoso convir que a questão é estabelecida de um modo perfeitamente claro e brilhantemente explanada.

Para suprir a falta desses textos à comunidade euclidiana, transcrevemos os três artigos diretamente das edições do jornal O Estado de S. Paulo, tendo sido encontradas algumas diferenças na redação do primeiro artigo com o que foi publicado na Obra Completa, como inversão, inclusão e supressão de vírgulas e travessões, inclusive com supressão de algumas palavras. Agora o texto está devidamente cotejado com sua edição princeps.

[Belém do Pará], Outubro de 2006

RISSATO, Felipe Pereira. Euclides da Cunha: Obra completa interminável. EUCLIDESITE. Artigos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/artigos. Acesso em: [data]. Reprodução permitida pelo Autor somente para fins educacionais e desde que citada a fonte.