A verdade e o erro

Farias Brito

A existência universal não só se desenvolve numa variedade infinita de modos através do espaço e do tempo, como ao mesmo tempo tem a propriedade de se representar na consciência ou mais precisamente ao que existe, pode-se dar o nome de realidade, empregando-se esta palavra em sua significação mais ampla (equivalendo a existência mesmo). À representação da realidade na consciência dá-se o nome de conhecimento. O conhecimento é, pois, como um segundo modo de existência das coisas, espécie de sombra ou representação da realidade, como se a consciência pudesse ser comparada “a um espelho através do qual se reflete a imagem do mundo”, para empregar uma expressão memorável de LEIBNIZ. De maneira que temos de um lado a existência e de outro lado conhecimento como representação da existência. Mas para que o conhecimento se possa compreender, indispensável é imaginar um princípio mais alto ― a consciência, sem a qual é inconcebível a representação das coisas. A consciência é pois o fato primordial da natureza, espécie de ponto de contacto de dois mundos, de que um é a imagem do outro. Realidade de um lado e conhecimento do outro, como imagem da realidade ― eis tudo, poder-se-á dizer; mas além disto, é indispensável a consciência como condição do conhecimento. De maneira que, além da realidade exterior que se desenvolve no espaço e no tempo, forçoso é reconhecer a existência de uma realidade interna, de uma atividade de ordem psíquica, sem a qual não se compreende consciência, e que é o princípio mesmo produtor do conhecimento. Essa atividade também se representa na consciência, sendo que não só conhecemos as fôrças da natureza, como as fôrças mesmas do espírito, de onde a distinção fundamental entre as ciências naturais ou a física (em seu sentido [p. 389] mais geral, compreendendo a física inorgânica (cosmologia), a física orgânica (biologia) ― e as ciências de ordem psíquica ou metafísica).Aqui, antes de passar a outras considerações, devo explicar o sentido desta palavra metafísica ― um sentido um tanto equívoco hoje. E para evitar confusão, convém começar explicando a origem mesma da palavra. Sabe-se que a palavra “metafísica”, embora tantos trabalhos notáveis tenham sido publicados sobre a metafísica de ARISTÓTELES, não foi empregada por ARISTÓTELES mesmo. Foi depois de ARISTÓTELES quando trataram de fazer a coleção de suas obras, que essa palavra apareceu, e deste modo: o colecionador reuniu em primeiro lugar tudo o que se referia ao estudo dos fenômenos físicos, e completa essa coleção, reuniu todos os outros trabalhos referentes a outros assuntos, isto é, referentes à psicologia, à moral, à teologia, etc., e a essa segunda coleção deu o nome de “Meta-ta-physica”; o que apenas significa isto: “além da física”, ou “depois da física”. E foi essa a origem bem modesta da palavra que depois adquiriu tão grande fortuna, como nos é explicado por WEBER em sua História da Filosofia Européia.

Não passo aqui o capítulo e a página, por não me lembrar de memória. O que é, porém, conveniente acentuar, é que ao espírito do colecionador não passou despercebido que havia uma distinção radical entre os estudos que foram publicados sob o título de Física, e os que foram publicados apenas com a nota: “depois da Física”, ou “além da Física”.

A palavra “metafísica” teve depois disto destinos vários, e seria fora de propósito fazer aqui a sua história; mas não devo passar adiante, para entrar precisamente na matéria do ponto, sem primeiramente me referir à sua última luta, isto é, à luta que teve de sustentar a metafísica: primeiro com o criticismo de KANT, depois com a filosofia positivista de AUGUSTO COMTE; luta de que resultou a crença geral entre os maiores pensadores do último período da história do pensamento, ― que havia resultado o desmoronamento e a morte da metafísica.

Eu faço desta luta uma história minuciosa e completa em um trabalho que publiquei sob o título de Evolução e relatividade (3° volume da série iniciada sob o título de Finalidade do Mundo), e creio ter o direito de me reportar aqui a esse trabalho; e não posso deixar de o fazer, porque é vastíssima a questão que nos coube por sorte, e eu de certo não o poderei esgotar no curto espaço de tempo de que disponho. Mas em todo o caso, é bom que fique consignado o seguinte, que é o que se deduz do espírito de meu trabalho: a metafísica, que é desmoronada por KANT e por AUGUSTO COMTE, não é a de que nos deixou indicação ARISTÓTELES. Esta permanece sempre viva, porque a ninguém é permitido negar a realidade dos fenômenos psíquicos e morais, nem há estudo que de modo mais soberano se imponha à curiosidade do espírito. À própria teologia não se pode negar o seu direito de permanência, porque a teologia não é senão uma psicologia de ordem transcendente e a transcendência é uma necessidade natural do espírito, havendo não somente uma transcendência matemática e dinâmica, como igualmente uma transcendência psíquica. Quer isto dizer: assim como a consideração da série dos números nos leva fatalmente à concepção dos espaço infinito, sendo que esta série não pode ser esgotada, e, dado um número maior, qualquer, é sempre possível imaginar um número maior para o que basta aumentar uma unidade; assim como a consideração da extensão nos leva fatalmente à concepção do espaço infinito, pois não podemos conceber limites para o espaço, e para onde quer que sejamos levados nos confins deste, sempre daí por diante se segue o espaço; do mesmo modo a consideração dos fenômenos psíquicos, desde que a consciência de que temos conhecimento, embora seja de proporções limitadas, tem, entretanto, aspirações ilimitadas, pois não há limites para a nossa aspiração cognitiva, ― a consideração dos fenômenos psíquicos, digo, nos leva necessariamente à concepção de uma consciência infinita.

Esta metafísica não morre, nem há quem seja capaz de matá-la, porque para isso seria preciso que a consciência fosse suprimida do mundo.

Não é, porém, esta a metafísica a que se opuseram KANT e AUGUSTO COMTE, parecendo antes que esses dois autores criaram um fantasma para terem o prazer de desmoroná-lo. A metafísica que KANT combate é a que ele imagina como estudo da alma, de Deus e do mundo, como simples idéias a que nada corresponde na realidade. Trata-se, pois, de uma verdadeira fantasmagoria. Mas não é a isto que se dá o nome de Psicologia. Esta é o estudo da consciência, e a consciência é o que há de mais vivo e real, e tudo poderá ser negado, menos a consciência, pois sem consciência não se concebe a negação mesma.

AUGUSTO COMTE chama “Metafísica” a interpretação da ordem da existência por ação de entidades abstratas, como estado de espírito que sucede à teologia, considerada por ele mesmo como interpretação da ordem da existência por ação de vontades abstratas (deuses).

Não tenho tempo para discutir aqui o positivismo. Reporto-me, pois, mais uma vez, à obra acima citada.

Voltemos, pois, ao problema inicial. A existência, já considerada em suas formas exteriores, já na sua manifestação interna, como energia produtora do conhecimento ― eis a realidade. Esta representação na consciência ― eis o conhecimento. Nós podemos definir o conhecimento nestes termos: a noção que adquirimos das coisas. Mas esta definição é imperfeita, porque noção e conhecimento são uma só e mesma coisa, e deste modo, dizer: ― o conhecimento é a noção que adquirimos das coisas ― , vem a ser a mesma coisa que dizer: ― o conhecimento é o conhecimento que adquirimos das coisas ― o que envolve uma petição de princípio. Verdade é que os conceitos últimos são de definição muito difícil, e se a definição tem por fim esclarecer, acontece, o mais das vezes, que, tratando-se de certos princípios, a definição em vez de facilitar, pelo contrário dificulta a compreensão do fenômeno. Com relação ao conhecimento, porém, não se dá isto e eu penso que o conhecimento pode ser com todo o rigor definido nestes termos: o conhecimento é a representação da existência na consciência.

As considerações que venho até aqui fazendo e que deixei ainda incompletas pela deficiência do tempo, e o conceito que fica aí por último firmado, eram indispensáveis para explicar a verdadeira significação da verdade e do erro.

Se a representação corresponde rigorosamente à coisa representada, temos o estado de espírito a que se dá o nome de verdade. Se não há essa correspondência, temos por conseguinte um erro. A verdade é, pois a perfeita correspondência entre a representação e a coisa representada na consciência, entre a realidade e a ideia. O erro é uma falsa representação, quer dizer, uma representação que não corresponde à realidade.

Questões gravíssimas poderiam ser levantadas aqui. Por que o espírito que tem por destino próprio conhecer, adquire falsos conhecimentos; mais do que isto: está nas coisas mais comuns sujeito a erros gravíssimos e só com grandes dificuldades e por prolongados esforços chega ao conhecimento da verdade? Por que a consciência, órgão que tem por função representar a realidade, está sujeita a representá-la falsamente?

Não entrarei na indagação de tais questões, pois nada poderia adiantar sobre problemas de tamanha gravidade em tão poucos momentos. Limitar-me-ei a fazer o desenvolvimento técnico da questão da verdade e do erro.

A verdade é um estado de espírito; mas não é o único. Há outros estados, constituindo o que LEIBNIZ chamava os diferentes graus do assentimento. Há em primeiro lugar o erro que parece o polo oposto da verdade. Mas o erro representa já um esfôrço do espírito: não equivale, pois, a zero na ordem do conhecimento, o que se pode chamar o nada na consciência. No erro há já uma representação, se bem que falsa; na ignorância há apenas a aptidão para o conhecimento, a capacidade do conhecimento.

Há ainda a distinguir a dúvida, a verossimilhança, a probabilidade, a certeza. Seria escusado entrar aqui na dedução de todos esses conceitos. A coisa é para deixar de lado por elementar em excesso. Questões de maior interesse podem ser levantadas:

Consideremos em particular a certeza. O que vem a ser a certeza? Certeza é a posse da verdade. Se eu tenho a noção ou representação de uma coisa ou de um fato, e tenho ao mesmo tempo a consciência de que essa representação corresponde à realidade e estar, não obstante, enganado. Como resolver então? Está aí a distinção que vai da certeza para a convicção. A certeza é, de fato, a posse da verdade: mas eu posso supor que a verdade está comigo e defender, não obstante, como verdade uma falsa representação. É que há distinção radical entre a certeza e a convicção. Examinemos essa questão, pois está aí o problema máximo do espírito, sendo necessário estabelecer o que se pode chamar o critério da verdade, o que mais importa para a distinção entre a verdade e o erro.

A certeza é a posse da verdade: a convicção é apenas crença nessa posse. Se eu possuo a perfeita representação, a representação adequada de um fato, tenho certeza. Se eu acredito ter essa representação, se há em mim esse pensamento, mas sem garantia objetiva, podendo, entretanto, essa representação ser verdadeira ou falsa, neste caso tenho apenas uma convicção. A convicção é, pois, apenas uma certeza de caráter subjetivo. Mas aquilo que eu suponho ser a verdade, aquilo que se me apresenta no fôro da consciência como verdade é o que constitui para mim a verdade. E eu tenho o dever de defender a minha crença, tenho o dever de lutar pela minha convicção. Neste caso como decidir?

A necessidade de um critério se impõe e o objeto principal da lógica não é senão fornecer-nos esse critério para decidir entre a verdade e o erro.

Já estou cansado e não poderei dar a esse problema o necessário desenvolvimento. Mas, só pelos termos em que está posta, compreende-se a importância da questão. O meu maior esforço consistirá em fazer o resumo das idéias.

Critério é julgamento. Diz-se que tem critério aquele que sabe julgar; isto, qualquer que seja o ramo de conhecimento em que se manifesta a atividade do espírito. Há, porém, o critério moral que é o que dirige as nossas ações; e há o critério do conhecimento que é o que resolve entre a verdade e o erro. Compreende-se que uma coisa está subordinada a outra, sendo certo que o conhecimento constitui um dos motivos e o mais importante na determinação das nossas ações. Quer dizer: nós somos determinados por verdades ou erros, e conforme é maior ou menor a influência da verdade, maior ou menor é o grau da nossa moralidade. Por isto podemos rigorosamente dizer que a Moral é a Lógica da ação, do mesmo modo que podemos dizer que a Lógica é a Ética do pensamento.

Como claramente se vê, cada uma destas proposições envolve questões da maior importância. Mas eu infelizmente não as posso aqui discutir.

Sobre o critério moral, isto é, sobre a regra suprema das nossas ações já publiquei também um trabalho exatamente sob esse título: A verdade como regra das ações. A esse trabalho peço igualmente permissão à ilustrada comissão examinadora para me reportar. É aí apresentada como regra suprema, como critério da conduta, a verdade. Resta agora deduzir o critério da verdade mesma. O primeiro problema pertence à Moral; o segundo pertence à Lógica. Vê-se por essa forma, que a Lógica se prende imediatamente à Moral; nem podia deixar de ser assim quando é sabido que o conhecimento é solidário da ação, nas mesmas condições que o conhecimento é solidário do pensamento.

Consideremos, porém, o critério da verdade. Toda a história do espírito humano não é senão a história de seu esfôrço contínuo pela conquista desse critério. Mas não é a verdade que domina a marcha do espírito. A verdade constitui apenas a sua aspiração suprema e a muitos se afigura como um ideal até certo ponto inatingível. O que domina o espírito e rege a marcha da história é a convicção, e esta varia de indivíduo a indivíduo, e mesmo no indivíduo varia de momento a momento. Por isto mesmo, tratando-se do critério da verdade, as opiniões se dividem, variando os critérios propostos na sucessão dos sistemas em que se decompõe o espírito em seu esfôrço pela conquista da verdade.

Eu apresentarei aqui em rápidas linhas as opiniões mais notáveis.

O critério da verdade é o testemunho da divindade. É o critério da filosofia da fé. Trata-se de uma filosofia que descansa na crença de que um dia Deus revelou a verdade ao mundo. Se há uma consciência suprema e essa consciência um dia falou e fez conhecer a verdade, compreende-se que não pode haver critério mais seguro. Mas para isto era preciso em primeiro lugar que se provasse a verdade dessa revelação sobrenatural; e, quando mesmo essa prova fosse dada, ainda assim não poderia ser aceito o critério proposto, por se tratar neste caso de um critério exterior, imposto de fora; e é necessário que o critério da verdade tenha o seu fundamento na própria consciência como órgão do conhecimento. De outra forma como se compreende que pudesse a consciência julgar da verdade da revelação mesma?

Fazer a história detalhada deste sistema, analisar os seus argumentos, analisá-lo em suas múltiplas modalidades, seria aqui impossível. Passemos, pois, a outro sistema.
O critério da verdade é o testemunho da antiguidade. É uma concepção que se prende à concepção anterior. Supõe-se que Deus falou no começo dos tempos e que a sua voz repercutiu com a maior intensidade no espaço: mas gradativamente se foi enfraquecendo através das idades o eco da palavra divina…

Rio de Janeiro, 17 de maio de 1909.

BRITO, Farias. A verdade e o erro. In: EUCLIDESITE. Artigos. Disponível em https://euclidesite.com.br/artigos. Acesso em [data]. Digitalizado de BRITO, Farias. A verdade e o erro. In: Inéditos e dispersos: notas e variações sobre assuntos diversos. org. de Carlos Lopes de Mattos. São Paulo: Grijalbo, 1966. 550 p. 21 cm. pp. 386-394. Prova escrita realizada como requisito parcial para a obtenção da cadeira de Professor de Lógica do Colégio Pedro II. em maio de 1909. N.B.: As notas do editor não foram reproduzidas. Ortografia atualizada. Reprodução permitida somente para fins educacionais e desde que citada a fonte.